Ele era o camelo: o espírito transformado em besta de carga. Servia apenas para obedecer cegamente. Ajoelhava-se para que a carga fosse bem colocada sobre seu dorso, não reclamava do peso, nem do encargo, e seguia em direção ao deserto para cumprir sua missão. Era o que lhe ordenavam.
Apesar de fazer sempre a mesma coisa, um dia se desviou do caminho e se perdeu. Na solidão do deserto, por ter que tomar decisões sozinho, percebeu-se diferente do que era até então. Tomou consciência de si mesmo e viu que na realidade não era um camelo, mas sim, um leão. Aquilo transformou sua existência: não devia mais obediência a ninguém. A palavra de ordem que até então era: “Eu devo”, agora, em liberdade, passou a ser: “Eu quero”.
Conquistou finalmente sua liberdade e achou que agora, livre das amarras, era o rei do seu próprio destino. Entrou em conflito com seus antigos senhores que ainda ordenavam: “Tu deves!”. Ele retrucava: “Eu quero!”.
Era a rebeldia dos oprimidos. Fazia o que tinha vontade, na hora em que queria, com quem desejava e, sem perceber, tornara-se novamente escravo, só que de outro senhor: os seus desejos!
Era a ditadura da vontade. Não compreendeu que ao se deixar dominar por outros deuses – do prazer, da sensualidade, da vaidade, do egoísmo – deixou-se corromper e de cumprir com seus reais deveres, de se empenhar em seu próprio destino.
Se antes era infeliz, por ser obediente ao extremo, agora era triste, pela rebeldia descabida e pelo total domínio dos prazeres.
Deste conflito interno surgiu o terceiro ser: o ser real. O ser em equilíbrio, que nutre a sabedoria da razão, mas compreende a necessidade do dever; que requer os direitos, mas cumpre as obrigações. Com a compreensão da existência de leis superiores, elaboradas por uma Inteligência Suprema, entende-as como sábias e justas, portanto, merecedoras de respeito e submissão.
Metaforicamente, é assim um pouco da história da humanidade. Saindo da fé cega e absoluta (o camelo obediente), onde as ordens, as crenças deveriam ser inquestionáveis, passou ao outro extremo, do materialismo, da negação absoluta de Deus, que ainda não podia compreender (o leão das vontades).
A terceira fase é a da fé raciocinada, onde o entendimento das leis que regem o mundo físico e o mundo moral o auxiliará a chegar à atitude de equilíbrio e ponderação.
Há liberdade, mas há o dever. A liberdade absoluta só seria possível na condição de eremita no deserto. Desde de que haja dois seres juntos, há direitos a respeitar e nenhum deles terá mais a liberdade absoluta (O Livro dos Espíritos, questão 826).
O dever não tira a condição de querer o melhor ou ser o senhor de si mesmo. É nessa condição, não mais de escravo obediente, nem de filho rebelde, mas tendo como base a fé raciocinada, que a criatura humana caminha a passos largos rumo à liberdade e à felicidade.
Luis Roberto Scholl
Inspirado em um conto de Friedrich Nietzsche