A Chave do Céu

“O Espiritismo contribuirá para a reforma da humanidade pela caridade.” Allan Kardec, Revista Espírita/1866

            Ao considerarmos que a origem e destino de tudo vêm de Deus, percebemos que esse laço une, não só as criaturas a Ele, mas também entre si, submetendo-as a um trabalho de avanço comum através da lei de solidariedade universal. Esse princípio de solidariedade de que todos fomos dotados, expressa-se na forma de sensibilidade que nos leva a compartilhar os problemas alheios, ter compaixão de suas dores e procurar aliviá-los. O grau de sensibilidade varia de indivíduo a indivíduo, dando a compreender que, quanto mais evoluído o ser, mais solidário ele é.

Ao consagrar a máxima “ama ao teu próximo”, Jesus instituiu como dever, necessário e rigoroso, a prática da caridade. Como expressão máxima de solidariedade “a caridade é ato de nossa submissão à lei de Deus; é o sinal de nossa grandeza moral; é a chave do céu, como bem lembra Lacordaire1.

Ninguém que tenha um sentimento de espiritualidade nega o princípio da solidariedade, mas grande parte procura se esquivar de sua prática, especialmente quando é necessária no seu aspecto material e para isso invoca alguns pretextos:

1º) Alegando que as coisas do coração ou do Espírito são mais importantes que as coisas materiais, procuram somente consolar aflições por palavras e conselhos úteis, sem atentar para as necessidades materiais.

Com certeza, se a causa for moral é no coração que iremos auxiliar; mas se for a fome, o frio, a doença, ou seja, se as causas forem materiais, não serão doces palavras que irão acalmá-las.

Deus, o Ser supremo, coloca ao homem na Terra o socorro dirigido a nossa alma e o socorro dirigido ao nosso corpo. Ligou-nos a Sua paternidade para que pudéssemos praticar a lei de caridade uns para com os outros. É somente porque o egoísmo fala mais alto que o homem não exerce esse sagrado dever de solidariedade.

Um pensador refletiu: “Cada abelha tem o direito à porção de mel necessária à sua subsistência; e se entre os homens a alguns falta o necessário, é que a justiça e a caridade desapareceram no meio deles”.

2º) A impossibilidade de descobrir as verdadeiras necessidades em meio a tantas simulações é outra justificativa.

Essa explicação não tem sansão da nossa consciência. Por ser a caridade um dever de quem tem condições, ela se torna um direito do próximo. Para conhecer suas necessidades reais, torna-se imperioso sair do comodismo do conforto e ir ao seu encontro. Como a caridade é infinita como Deus, do qual emana, não admite nenhuma outra possibilidade. Pode se enganar o mundo por longo tempo, momentaneamente a consciência, mas jamais se enganará a Deus.

Tudo aquilo que desprezarmos nessa existência, trará consequências no futuro, quando poderemos ser o necessitado e receber o mesmo desprezo do egoísmo.

3º) Desconhecer a medida do que dar é a terceira justificativa. Afinal, o que me pertence e o que deve ser distribuído para aliviar os mais carentes?

“Do vosso patrimônio como do vosso trabalho, só uma coisa vos é permitido tirar em vosso proveito: o necessário; o resto cabe aos pobres. Eis a lei.” Novamente é Lacordaire1 quem alerta, reforçando que o necessário deve ser medido sem exageros.

E quanto à família? A família e os filhos são os nossos primeiros necessitados e é a eles que devemos atender em primeiro lugar. Velar pelo futuro dos filhos, proporcionar dias calmos e tranquilos, deixar-lhes uma pequena herança, se possível, que lhes permita continuar o bem que se começou, é legítimo e fazem parte das ocupações da paternidade. Mas, jamais, através do exagero, ensiná-los a viver egoisticamente, somente para si.

De acordo com a hierarquia dos instintos do coração atender também aos genitores em suas carências, aos irmãos da carne, aos amigos queridos e, na sequência, todos os pobres, a começar pelos mais carentes.

Ter muito cuidado para não favorecer demasiadamente a uns com exclusão dos outros. Partilhando equitativamente os benefícios é que se demonstra sabedoria e cumprimento da lei divina de solidariedade em relação ao próximo.

O grande Rousseau afirma1“Para mim sei que todos os pobres são meus irmãos e que não posso, sem uma injustificável dureza, lhes recusar o fraco socorro que me pedem. Na maior parte são vagabundos, concordo. Mas conheço demais as penas da vida para ignorar por quantas desgraças os homens honestos pode encontrar-se reduzido em sua sorte. E como poderia eu estar seguro de que o desconhecido que vem implorar assistência em nome de Deus, talvez não seja esse homem honesto, prestes a perecer de miséria, e que a minha recusa vai reduzir ao desespero? Quando a esmola que se lhes dá não fosse para eles um socorro real, seria ao menos um testemunho de que se é solidário com suas penas, um abrandamento à dureza da recusa, uma espécie de saudação que se lhes faz.”

Tal é o pensamento do filósofo do século XVIII que, temendo ignorar um homem honesto, dá a todos, pois considera todos como irmãos.

“A caridade é uma bela e doce vida, é a vida dos santos, é a chave do céu.

 

Luis Roberto Scholl
1KARDEC, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos. Ano VIII 1865, agosto. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2004.